Plasticidade e desenvolvimento

Será que há sentido no fato de futuras mamães cantarem para seus futuros bebês, ainda aconchegados em seus ventres durante a gravidez? Há razão para conversarem com eles como se estivessem já crescidos e sentados ao seu lado? Como estes sons carregados de significado e emoção são percebidos pelo ser que ainda se forma ao longo das semanas que se sucedem até o nascimento?

O sistema auditivo humano começa a funcionar a partir da vigésima segunda semana de gestação. Neste estágio, as respostas comportamentais para sons são observadas apenas para estimulação intensa por via óssea já que o feto está em um ambiente altamente atenuado para sons.

Envolto por líquido aminiótico, os primeiros sons que o feto percebe são ruídos de baixa frequência oriundos dos movimentos do trato digestivo e sons maternos transmitidos através dos ossos do esqueleto1. As implicações sensoriais do batimento cardíaco no ventre materno proporcionam ao feto uma experiência rítmica única que explica a tendência do recémnascido em procurar distração sonora assim que nasce.

Os sons do mundo e principalmente da mãe e seu ambiente de convívio são determinantes para o registro das primeiras vivências do bebê e irão muito provavelmente moldar suas escolhas perceptuais futuras. Além de tudo e mais importante do que nunca, representarão a condição essencial para o desenvolvimento do sistema auditivo, já que este não se formará sem a presença incondicional do estímulo sonoro.

Como e quando o feto se torna um ser ouvinte?

Enquanto os componentes estruturais da orelha interna (labirinto ósseo coclear) já estão formados por volta da 15a semana, a função coclear não irá ocorrer até a 24a semana gestacional2. Avaliações eletrofisiológicas obtidas em neonatos pré-termo mostram evidências de que os potenciais evocados auditivos são inicialmente registráveis entre a 25a e a 32a semana gestacional3. Após a 34a semana, estes potenciais tornam-se mais robustos à medida que os neurônios do gânglio espiral tenham formado conexões neurais suficientes com o tronco encefálico e as estendido em direção ao córtex4.

O desenvolvimento da cóclea e do sistema auditivo centralé complexo. A tonotopia coclear é preservada ao longo do feixeneuronal como consequência do processo que se estabelecedesde os neurônios do gânglio espiral, através de precisas conexõesentre as células ciliadas e neurônios-meta do troncoencefálico, codificando diferentes frequências sonoras.

O desenvolvimento gradual dos mapas tonotópicos se dá inicialmente nas baixas frequências, cuja maturação é anterior às altas e cujo processo é geralmente chamado de plasticidade frequência-dependente6. Este gradiente de desenvolvimento (baixas frequências-altas frequências) ocorre devido às características físicas do ventre materno, no qual frequências acima de 500 Hz são atenuadas por tecidos e fluidos dentro da cavidade intrauterina. Ao final da gravidez, conforme as paredes do útero começam a tornar-se menos espessas, aos poucos, mais energia de altas frequências passa através deste casulo humano.

Para comprovar o fato de que vale a pena conversarmos com os nossos rebentos em desenvolvimento, pesquisadores8 examinaram a respostas de fetos humanos a estímulos sonoros externos (tons puros de diferentes frequências: 100, 250, 500, 1.000 e 3.000 Hz), apresentados através de um alto-falante posicionado próximo ao abdômen de gestantes. Gravações dos movimentos fetais realizadas a partir de ultrassonografia pélvica revelaram maior preferência dos fetos para sons abaixo de 500 Hz, ao redor da 19a semana de gestação. Até a 27a semana, a maioria apresentou reações para sons abaixo de 500 Hz, mas nenhum deles para sons de 1.000 ou 3.000 Hz. Os autores apenas registraram respostas para sons acima de 1.000 Hz após a 33a semana gestacional, sendo que menores intensidades foram necessárias para eliciar a resposta.

O uso de ressonância funcional e MEG (magnetoencefalografia) mostram uma medida mais direta da função cortical em resposta a sons agudos fortes. A partir destes procedimentos, pesquisadores constataram que registros mais tardios evidenciam que entre 33 e 36 semanas, o feto pode diferenciar sons de 500 Hz frente a outros de frequências mais altas e ao final do período gestacional (37-41 semanas) o córtex auditivo é ativado por sons que contêm espectro mais largo de frequências. Estes achados pré-natais demonstram que a exposição natural aos sons, principalmente de alta frequência, são a base para o reconhecimento de voz, discriminação de vogais, entre outras habilidades complexas da função auditiva.

Um alerta para os cuidados com bebês ao nascimento é identificado em estudo12 que revela as implicações da exposição de ruído impostas pelas unidades intensivas em neonatos pré-termo. Os autores reforçam a premissa de que o ambiente intrauterino permite ao feto a possibilidade de receber sons de maneira protegida, assegurando o desenvolvimento adequado do sistema auditivo periférico e central. Quando o recém-nascido deixa o ventre materno e entra em um entorno repleto de ruído durante este período crítico de formação, pode haver uma ruptura na organização funcional dos circuitos corticais auditivos. Além disso, o ambiente ruidoso mascara os sons de fala, limitando a qualidade de exposição à linguagem do bebê, o que pode levar a alterações futuras em seu desenvolvimento.

Como o bebê ouve o mundo?

Assim funciona a audição do bebê, mesmo antes de seu nascimento – à medida que o córtex auditivo começa a receber informações provenientes do mundo externo, uma rede sistematicamente tecida cria o arcabouço do material auditivo engendrado pela via e impregna o arquivo com dados valiosos, imprescindíveis para o surgimento da magia da linguagem oral.

Até algum tempo atrás, nossa visão sobre o desenvolvimento da audição na criança era limitada às concepções provenientes da observação clínica e do que a literatura era capaz de explicar. A compreensão do funcionamento do sistema auditivo central estava totalmente fundamentada em estudos experimentais com animais e na investigação do comportamento auditivo da criança, principalmente a partir de seu desenvolvimento de linguagem. A fragilidade do epitélio sensorial era considerada o atestado das habilidades do pequeno ser e seu destino e sorte traçados em termos de possibilidades futuras. Apesar de ainda estarmos cercados de muitos questionamentos e inquietudes, a ciência e tecnologia em imagens nos trazem suporte e evidência de como se processa e estrutura o sistema auditivo central e quais as consequências da privação auditiva, desde a fase embrionária até a idade adulta. O surgimento das emissões otoacústicas e a aplicação e o aperfeiçoamento de novas técnicas de captação de potenciais evocados ao longo de toda a via auditiva central nos trazem balizadores que norteiam, paramentam e agilizam nossa intervenção.

Plasticidade e maturação

Enquanto a cóclea humana apresenta-se totalmente funcional ao nascimento, o sistema auditivo central é inicialmente bastante imaturo. Durante a infância e adolescência, há um amadurecimento contínuo das vias auditivas centrais, revelado, por exemplo, pelas mudanças das propriedades dos potenciais evocados. Se os potenciais evocados de tronco encefálico (PEATE) levam alguns anos para amadurecer, outros potenciais (média e longa latência) ainda podem modificar-se até 12-15 anos de idade. Muito deste processo está também relacionado ao desenvolvimento anatômico do córtex cerebral, como mostram as Figuras 3.1, 3.2 e 3.313. A orelha interna inicia seu desenvolvimento a partir do vigésimo dia de gestação, com a transformação do ectoderma da placa ótica ou otocisto. Sua atividade funcional aparece por volta da 25a semana e vai se aperfeiçoando gradativamente. Como o feto humano, além de ouvir sons intrauterinos, é capaz de responder a eles, conforme descrito anteriormente, a experiência auditiva pré-natal traz implicações importantes para o futuro bebê.

Figura 3.1 Projeções cocleotópicas nos estágios iniciais do desenvolvimentodas vias auditivas1.
Figura 3.2 Cóclea e córtex conectados mais pontualmente após ofortalecimento das vias auditivas pós-estimulação no adulto.
Figura 3.3 Projeções centrais após lesão coclear basal induzida emperíodo pós-natal.



Durante o primeiro ano de vida, os neurônios do tronco encefálico estão amadurecendo, e bilhões de conexões neurais estão sendo formadas. Durante esse tempo, o tronco e o tálamo estão exatamente começando a conectar-se com o córtex auditivo. Quando a entrada sensorial no sistema nervoso auditivo é interrompida, em especial durante os primeiros estágios de desenvolvimento, as propriedades morfofuncionais dos neurônios no sistema auditivo central podem ser drasticamente alteradas. Em alguma instância, os efeitos nocivos da ausência de entrada sonora podem ser melhorados com a reintrodução da estimulação, porém existem períodos críticos para a intervenção.

Embora o sistema auditivo tenha recursos limitados para processar informações, o ambiente acústico é infinitamente variável. Para codificar adequadamente o mundo sonoro, o sistema auditivo central em formação torna-se especializado através de mecanismos adaptativo-dependentes que operam durante um intervalo sensível. Estudos recentes têm demonstrado que plasticidades celular e sináptica ocorrem por toda a via auditiva central e são manifestadas em regiões cerebrais como o mesencéfalo e o córtex, que interagem através das vias aferentes e eferentes. A perda auditiva induz a profundo reponderamento do ganho sináptico excitatório e inibitório ao longo do sistema auditivo central e está associada a uma superexcitabilidade que é observada in vivo. Análises comportamentais e computacionais podem proporcionar bases para a compreensão de como estes efeitos celulares e plásticos subjazem ao desenvolvimento de funções cognitivas como a percepção de fala.

A evidência de que a experiência auditiva influencia na maturação do sistema auditivo central é ao mesmo tempo convincente e desafiadora. Esta certeza sustenta-se em vários estudos que mostram que a deficiência auditiva precoce ou uma superexposição a uma gama reduzida de pistas sonoras podem interromper o estabelecimento de propriedades e mapas de codificação centrais.

A premissa fundamental é de que as mudanças impostas pela experiência nas propriedades da codificação neural do SNAC estão diretamente relacionadas a certas habilidades perceptuais. A ideia de que estas propriedades de codificação não amadurecem adequadamente na ausência de estimulação acústica recebe forte reforço vindo de estudos com animais (corujas). Os achados mostram que a privação monoaural a sons leva à alteração na conectividade e nas propriedades de codificação dos neurônios do mesencéfalo, sendo que estas mudanças têm estreita correlação aos distúrbios na habilidade de localização sonora.

Da mesma forma, a exposição continuada a sons (tom puro pulsátil) em ratos leva a um alargamento da representação cortical para a frequência específica e reduz a representação cortical das frequências adjacentes àquela extraestimulada. Este efeito funcional pode ser observado pelas variações de desempenho em atividades de percepção de sons. Apenas três dias de exposição continuada a tons puros, iniciada logo após o nascimento, podem alterar a projeção tonotópica do tálamo ao córtex. Estes achados evidenciam que a estimulação precoce leva a mudanças neurais e comportamentais correlacionadas, implicando que as habilidades auditivas no adulto podem ser fortemente impactadas por períodos, mesmo que breves, de aumento ou diminuição da experiência acústica. Pode-se dizer que o sistema nervoso central é maleável para mudanças impostas pela experiência e as variações das oportunidades sonoras recebidas pelo ambiente são consideradas como plasticidade induzida ou plasticidade de estimulação induzida. Isto significa que, respeitando os períodos críticos para o desenvolvimento, onde os sons do mundo, mesmo que recebidos através do útero materno, serão essenciais para a formação do sistema, todo e qualquer contato com sons nos primeiros dias, meses e anos após o nascimento poderá interferir na maneira como o córtex adulto responderá no futuro. Como exemplo desta afirmação é o fato de que o treinamento musical vivenciado na infância está ligado a mais robusta codificação a sons na idade adulta. Parece que o sistema usa um mecanismo pelo qual capitaliza experiências iniciais que podem ser resgatadas mais tarde. Considera-se esta evidência como uma “reserva auditiva” e dependerá de como este indivíduo irá relacionar-se com os sons ao seu redor, para se determinar o desenvolvimento e a manutenção desta reserva ao longo da vida.

Estudos realizados com músicos examinaram o processamento auditivo de jovens adultos que participaram de aulas de música quando crianças. Observou-se que, aqueles adultos que tocaram algum instrumento musical, por um período de um a cinco anos, próximo aos 9 anos de idade, apresentaram respostas neurais mais robustas para notas musicais quando comparados a seus pares sem este treinamento inicial. Segundo os autores, a reserva auditiva angariada na infância irá influenciar o desempenho auditivo mais tarde, assim como a maneira como o sistema auditivo nervoso central irá reagir frente a uma eventual privação sensorial.

Plasticidade e linguagem

O desenvolvimento da percepção auditiva é um evento prolongado que se inicia no período pré-natal e continua até a adolescência. Das 25 a 40 semanas após a concepção, o feto humano gradualmente se torna responsivo aos aspectos espectrais e temporais do som, incluindo fala, conforme a medição da frequência do batimento cardíaco24. A idade na qual a performance madura do sistema auditivo é alcançada varia intensamente com a tarefa e pode estender-se durante uma década. Estudos feitos com mães durante a gestação mostram que se expostas regularmente a determinados tipos de sons (leituras ou músicas), terão recém-nascidos sensíveis ao estímulo previamente dado, mostrando respostas consistentes após o nascimento (movimento de sucção). Apesar disso, o cérebro humano não está totalmente desenvolvido ao nascimento. Embora a produção de neurônios através da divisão celular atinja seu ápice aproximadamente 16 a 20 semanas após a concepção, o desenvolvimento de conexões sinápticas novas e mais eficazes continuará na idade adulta.

Neonatos podem responder seletivamente para a voz materna através do registro do aumento da frequência cardíaca, presume-se, devido a sua experiência acústica intraútero.

A influência da experiência pré-natal a sons tem sido demonstrada pela habilidade de neonatos de discriminar sentenças de idiomas diferentes ou diferenciar expressões emocionais distintas baseados em pistas prosódicas e rítmicas28,29. Estudos recentes também indicam desenvolvimento avançado da resposta cortical para sons de fala em bebês pré-termo comparados com os controles da mesma idade gestacional, sugerindo que a maturação do sistema auditivo é dirigida pela experiência sensorial.

Esta precocidade pode estar relacionada ao desenvolvimento anatômico encefálico acelerado nos pré-termos, incluindo amadurecimento mais rápido da massa branca encefálica.

18 Tratado de Audiologia

Algumas percepções desenvolvem-se rapidamente, como, por exemplo, a resolução de frequências que está pronta por volta dos 6 meses. Por outro lado, a discriminação de frequências só terá o padrão adulto aos 4 anos de idade, quando acessada com tons de longa duração. Todavia, quando sons breves são usados, a discriminação de frequências continuará a melhorar até os 9 anos, sugerindo que fatores relativos à atenção podem contribuir para o desempenho diminuído de crianças mais novas.

A localização sonora amadurecerá por um intervalo mais longo: a menor angulação audível evolui dramaticamente ao longo dos 5 primeiros anos de vida (de 25 graus para 2 graus), embora alguma variabilidade entre sujeitos continue por vários anos.

Percepções que levam mais tempo para amadurecer incluem a detecção de pistas temporais, como modulação de frequências e amplitude, as quais contribuem significativamente para a compreensão de fala34,35. Dessa forma, a capacidade de detectar as modulações continua a evoluir além dos 7 anos de idade e pode ainda não alcançar os valores do adulto até os 10 anos de idade36,37. Similarmente, a detecção de modulação de frequência continua sua maturação até por volta dos 8 anos.

Usando outra medida de resolução temporal, a capacidade de detectar um tom seguido imediatamente por ruído (mascaramento de fundo) mostra que os limiares para crianças de 10 anos de idade não se apresentam ainda no padrão de adultos. Esta lenta progressão perceptual reflete-se no desenvolvimento do sistema auditivo central humano. As respostas evocadas corticais alcançam o estado maturacional adulto durante os dez primeiros anos de vida e este fato está correlacionado à maturação axônica das camadas corticais supragranulares.

Estes estudos mostram que o comportamento auditivo emerge aos poucos e sugerem que a experiência acústica pode moldar percepções específicas durante intervalos discretos.

Plasticidade e modalidades sensoriais

Como podemos ver plasticidade? O fenômeno pode ser evidenciado de várias maneiras diferentes. As ferramentas mais usadas para provar a plasticidade incluem paradigmas comportamentais, potenciais evocados sensoriais, eletroencefalografia (EEG) de alta densidade, magnetoencefalografia (MEG), imagens funcionais (fMRI) e análise de tecido humano. Imagens funcionais, magnetoencefalografia e potenciais evocados têm emergido como parâmetros não invasivos para acessar padrões de resposta neural em humanos. A partir de pesquisas com animais, níveis mais altos do sistema auditivo parecem ser mais plásticos e por esta razão, potenciais corticais tardios (N1-P2) têm sido usados para investigar mudanças na atividade auditiva central.

Sharma et al.43 investigaram os períodos críticos para o desenvolvimento, a deterioração e plasticidade das vias auditivas centrais em crianças ouvintes e deficientes auditivas após terem sido submetidas ao implante coclear. Para tanto, mediram a maturação e o desenvolvimento do sistema auditivo central através da latência, morfologia e topografia dos potenciais evocados auditivos corticais (PEAC). Os autores registraram PEAC em resposta ao estímulo de fala, tendo como base experimentos prévios com crianças com perda congênita implantadas que permitiram o estabelecimento da existência e limites de tempo de um período crítico de desenvolvimento das vias auditivas centrais. Os resultados mostram que estas vias são maximamente plásticas por um período de 3,5 anos. Se a estimulação for proporcionada dentro deste período, as latências do PEAC podem alcançar os valores padrão para a idade entre 3 e 6 meses após o início da estimulação com o implante coclear. Todavia, se a estimulação for retardada por mais de 7 anos, a plasticidade das vias centrais é reduzida drasticamente. Nas crianças implantadas tardiamente, as latências PEAC decrescem significativamente ao longo de aproximadamente um mês após o início da estimulação e então permanecem constantes ou mudam muito pouco após meses e anos de uso do implante coclear (IC).

As autoras do estudo43 concluem que a menor intensidade observada da plasticidade central em crianças com perdas congênitas implantadas após os 7 anos de idade está correlacionada com defasado desenvolvimento de linguagem oral. As mesmas autoras supõem que este aspecto seja causal, já que o modelo animal sugere que o córtex auditivo primário pode estar funcionalmente desconectado do córtex auditivo de ordem superior devido ao desenvolvimento restrito das conexões inter e intracorticais nas crianças implantadas tardiamente. Outro aspecto está relacionado à reorganização do córtex superior por outras modalidades (p. ex., visão). Imagens feitas através de PET scan mostram que após a idade de 4,5 anos de privação auditiva, o córtex superior não está “silencioso” como era de se esperar na surdez, mas, ao contrário, está ativo, sugerindo recrutamento da área por outras funções.

Assim como há comunicação constante entre as diversas modalidades sensoriais, indicando o quanto o cérebro é econômico, a deficiência auditiva intensifica os recursos perceptuais relacionados à informação visual e por consequência aumenta a arquitetura neural recrutada para esta finalidade. A visão é então resgatada de forma a ativar o córtex auditivo, indicando reorganização dos mapas corticais. A compensação das informações auditivas através da estreita relação do córtex visual e auditivo na interpretação da mensagem oral pode ser identificada como plasticidade de modalidade cruzada, ou cross-modal.

Não há dúvida de que o homem é um animal extremamente visual. Embora as várias modalidades sensoriais proporcionem informação importante, é a visão que em geral oferece pistas confiáveis e detalhadas relacionadas ao entorno imediato. Não é de se espantar que quase um terço do cérebro humano seja usado para processar informações visuais. Mas o que acontece quando a informação visual não mais alcança as regiões corticais correspondentes – estas áreas simplesmente são perdidas e tornam-se não responsivas? Muito pelo contrário, o que parece é que indivíduos cegos congênitos beneficiamse do recrutamento dessas áreas por outras modalidades para desempenharem funções não visuais.

Em seu laboratório, Fortin et al.44 têm estudado a cegueira e suas consequências e apontam que indivíduos cegos demonstram habilidades auditivas excepcionais. A capacidade de localizar sons para estas pessoas está fortemente correlacionada à atividade no córtex occipital (sítio de processamento visual) indicando que essas áreas tornaram-se funcionalmente engajadas para essa tarefa. A natureza plástica do cérebro humano permite que faça novo uso de regiões antes dedicadas a outras funções.

Ao mesmo tempo, vários estudos sustentam a evidência de que o contrário também é verdadeiro. Munro45 aponta que em surdos profundos, a região subutilizada do córtex auditivo é ativada por estimulação visual. Esta asserção talvez explique, em parte, a variabilidade de resposta em indivíduos implantados tardiamente. Se uma região do córtex auditivo responder para visão antes do implante ou uso de aparelho de amplificação sonora individual (AASI), talvez seja difícil reverter a plasticidade cruzada que já ocorreu.

A perda congênita leva a uma organização atípica do sistema auditivo central. Todavia, a extensão pela qual a via será reorganizada durante a privação sensorial não é totalmente conhecida. Há considerável evidência de que se o input sensorial é introduzido após o período de máxima plasticidade, as vias podem acusar características funcionais alteradas. Essa atividade atípica pode refletir-se no processo de plasticidade de modalidade cruzada evidenciada por ativação parietotemporal, observada nos registros de P1 nos PEAC de crianças implantadas tardiamente (Figura 3.4).

Assim como a ausência do input periférico na privação sensorial e subsequente reintrodução da estimulação levam à plasticidade do sistema auditivo central, as consequências das alterações dos mapas corticais, hoje, podem ser estimadas e de certa forma controladas. Em muitos casos, a manutenção da responsividade cortical deve ser garantida, pois há a possibilidade de aproveitamento das regiões correspondentes à lesão. Há situações, no entanto, em que o recrutamento das mesmas por outras modalidades sensoriais, como a visão, por exemplo, torna-se a única e exclusiva alternativa para que a comunicação se estabeleça e a memória auditiva seja ativada, ainda que este desencadeamento se dê por outros estímulos, que não sons.

Figura 3.4 Imagens das densidades de corrente reconstruídas apartir de P1 (PEAC), projetadas na superfície cortical de: A. Criançasouvintes. B. Crianças implantadas precocemente. C. Crianças implantadas tardiamente.

A plasticidade induzida será a base para a estruturação de nossas reservas auditivas, que serão fundamentais para o desenvolvimento e manutenção de habilidades auditivas, essenciais para o desenvolvimento de linguagem.

A ausência de exposição aos sons, ou a exposição exagerada a eles poderá comprometer a maneira como a arquitetura da função neuronal e o mapeamento correspondente cortical irá se estabelecer. No caso da deficiência auditiva, as estratégias elencadas para compensar a entrada periférica serão determinantes para que o sistema se forme (perda congênita) ou para que se possa resgatar os arquivos previamente sedimentados (perda adquirida). Além disso, as modalidades sensoriais envolvidas estarão em compasso com as mudanças do padrão de representação cortical, trazendo mais pistas ou eventualmente se configurando como caminho exclusivo para a reabilitação.

A partir das questões apontadas, podemos dizer que nossa história auditiva se inicia muito antes da completa formação de nosso sistema auditivo. As preferências sonoras individuais, as propriedades físicas, vocais ou mesmo as habilidades musicais de nossos progenitores (principalmente da mãe) serão determinantes para o processo de codificação neuronal do córtex auditivo.

Conclusão

A partir das questões apontadas, podemos dizer que nossa história auditiva se inicia muito antes da completa formação de nosso sistema auditivo. As preferências sonoras individuais, as propriedades físicas, vocais ou mesmo as habilidades musicais de nossos progenitores (principalmente da mãe) serão determinantes para o processo de codificação neuronal do córtex auditivo.

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Edilene Boéchat

Fonoaudióloga, há 30 anos trabalhando na área da audição e linguagem, com grande experiência em adaptação de aparelhos de amplificação sonora.